HOJE AMANHECI INSATISFEITO
Hoje amanheci insatisfeito.
O pão estava amargo e até o jornal que leio todos os dias me pareceu de uma insipidez atroz,
De repente, Senhor, lembrei-me dos que não leem jornais - mas os usam para embrulhar restos de pão que os paladares amargos deixam no prato após uma noite insatisfeita.
Como deve ser delicioso esse pão Senhor, depois que tu o adoças com tua própria boca!
ÀS VEZES LAMENTO MINHA SORTE
Às vezes lamento minha sorte
– e o que me espera em seguida é um dia luminoso. Às vezes bendigo minha fortuna
– e logo após um furacão desaba sobre minha cabeça. Brincas comigo, Senhor?
Ou será que devo lamentar minha fortuna e bendizer a má sorte como se o avesso e o direto fossem iguais para ti?
QUANDO EU ERA PEQUENO
Quando eu era pequeno, topava contigo a cada instante.
Adolescente, passei a encontrar-te cada vez menos.
Adulto, duvidei que algum dia tivesse visto o brilho de sua face e
te busquei incessantemente por todos os caminhos.
Não e encontrei, Senhor, nem poderia.
O piolho que segue na juba do leão,
jamais terá consciência de que possui um leão inteiro!
LUZES DO PALCO
Tenho procurado por todos os meios me destacar dos demais.
É minha a intervenção mais inteligente, os lance intelectual mais audaz.
Procuro as luzes do palco com o mesmo fervor com que o peregrino procura a face.
Que tolice, Senhor.
Dentro de alguns anos, numa tumba escura, que artifícios usarei para chamar a atenção sobre o meu pobre crânio descarnado?
DEPOIS QUE OS LÁBIOS SE FECHAM
Para onde vai o canto, depois que os lábios se fecham?
Para onde vai a prece, depois que o coração silencia?
E os rostos que amamos para onde vão, Senhor, depois que nossas pupilas se transformam em gotas de lama?
Ontem vi uma andorinha que devia ter uns cinco milhões de anos.
Será que eu também sobreviverei ao que restar de mim?
MEUS SONHOS
Quando menino, nascido serra acima, o que mais eu desejava era o mar.
Eu queria apenas o mar a mais nada - para nele defraudar meus sonhos marinheiros.
Fui crescendo e ampliando meus desejos.
Uma casa junto ao mar, um barco a motor, festas, empregados, piscina.
Obtive tudo isso, Senhor.
Mas aí então o mar dentro de mim já havia secado.
APENAS FRÁGIL
Não sou melhor que uma pedra, uma folha, a madeira de minha ponte, o pó das estradas.
Sou apenas mais frágil, Senhor, pisa-me com carinho!
PORQUINHO DA ÍNDIA
Na minha infância, havia um jogo que consistia em se colocar um porquinho-da-índia no interior de um círculo formado por casinhas numeradas.
Vencia aquele cuja aposta correspondesse ao número do esconderijo escolhido pelo animalzinho.
Nunca mais vi esse jogo, Senhor, mas sei que algum religioso continua praticá-lo contigo.
Cercam-te com suas igrejas almiscaradas e correm a vender apostas aos seus fiéis.
AMANHECI FRUSTADO
A última tentativa de me entrevistar contigo foi um grande fracasso.
Acendi incensos, decorei com flores – e nada de ti, Senhor.
Amanheci frustrado e fatigado como se dançasse a noite inteira nos infernos.
Resolvi então fazer tudo ao contrário: dancei, me embriaguei, libertei fantasmas, invoquei demônios.
Tive um sono embalado por anjos em doses paragens celestiais.
És sempre assim, Senhor? Imprevisível? Desconcertante?
ROSTOS QUE AMA
O velho índio foi encontrado vagando pela floresta, aparentemente perdido.
Perguntaram-lhe. Respondeu cheio de brios: “Perdi foi a minha casa; não consigo encontrá-la”.
Quanta lição, Senhor.
O homem pode perder sua casa, sua rua, os rostos que ama – sem jamais se perder de si mesmo.
Por: Jamil Snege